terça-feira, 27 de novembro de 2007

Não sou uma mulher,

Vim para Lisboa; recebia regularmente cartas dele. Estudava-as, decompunha as frases palavra por palavra para encontrar a oculta verdade do sentimento que as creara. E terminava sempre - meu Deus! - por descobrir uma serenidade gradual no seu modo de sentir. Rytmel escrevia-me com muito espírito e com muita lógica para poder pôr o coração no que escrevia. Evidentemente o seu amor passava da paixão para o raciocínio. Criticava-o: prova de que não estava dominado por ele. Tinha até já palavras engenhosas e literárias. Valia-se da retórica! Ao mesmo tempo a sua letra tornava-se mais firme; já não eram aquelas linhas tortas, convulsivas e arrebatadas que palpitavam, que me envolviam... Era um infame cursivo inglês, pausado e correcto. Já me não escrevia como dantes em papel de acaso, em folhas de carteira, em pedaços de cartas velhas, que denotavam as inspirações do amor, os sobressaltos repentinos da paixão: escrevia-me em papel Maquet, perfumado! Pobre querido, o que o seu coração tinha de menos em amor tinha de mais o seu papel em marechala!
E eu? É talvez ocasião de falar aqui do meu sentimento. Duvidei faze-lo. Não queria colocar o meu coração sobre esta página como numa banca de anatomia. Mas pensei melhor. Eu já não sou alguém. Não existo, não tenho individualidade. Não sou uma mulher viva, com nervos, com defeitos, com pudor. Sou um caso, um acontecimento, uma especie de exemplo. Não vivo da minha respiração, nem da circulação do meu sangue: vivo abstractamente, da publicidade, dos comentários de quem lê este jornal, das discussões que as minhas mágoas provocam. Não sou uma mulher, sou um romance.

O mistério da estrada de Sintra, Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão

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